segunda-feira, 23 de julho de 2012

Considerações jurídicas de Letícia Penteado sobre as Resoluções 265 e 266/2012 do CREMERJ:

retirado do post da Dra Melania Amorin, No Facebook.


As Resoluções 265 e 266/2012 do CREMERJ atentam contra a Constituição (Art. 5º, incisos II e XIII) e contra a Lei Federal n.º3.268/57, sendo não apenas inconstitucionais, mas também ilegais, constituindo ainda abuso de autoridade (Lei 4898/65, Art. 3º “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: [...] j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.), por atentarem contra a liberdade profissional não só dos médicos do RJ, como das parteiras, enfermeiros e doulas.

Segundo a Constituição Federal:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

O inciso II estabelece o que chamamos de princípio da legalidade. Esse é o princípio que nos defende contra a arbitrariedade da Administração (ou seja, do governo ou de quem lhe faça as vezes, órgãos públicos, autarquias, qualquer instituição que regule a sociedade e seus indivíduos).O CREMERJ citou, sim, vários dispositivos legais como suposto embasamento para as Resoluções. Mas nenhum deles faz qualquer vedação à presença de doulas ou obstetrizes nas salas de parto; aliás, muito pelo contrário, já que a maior parte dos dispositivos legais citados estabelece justamente a exigência do tratamento digno à gestante e à criança, coisa que a presença de doulas e obstetrizes, como sabemos, só ajuda a proporcionar. Ou seja, o Conselho tirou a sua proibição do virtual nada, sem nenhum direito ou poder para fazê-lo.Existe um princípio do Direito, apoiado nesse princípio da legalidade, que diz que “não cabe ao intérprete restringir o que a lei não restringiu”, ou seja, não pode o CREMERJ criar obstáculos inexistentes na lei, ainda que sob a desculpa de ser essa a sua “interpretação” dessa lei. Ou seja, não dá para o Conselho dizer que “como o ECA fala de nascimento sadio e harmonioso e, na minha opinião (tosca e sem fundamento), isso só tem como ocorrer no hospital, eu estou usando isso como base para a minha proibição ao parto domiciliar”. Outro princípio interessante do Direito Administrativo que cabe citar neste caso é o da legalidade estrita, ou seja, o Administrador (neste caso, o CREMERJ), ao contrário da gente (que pode fazer tudo o que a lei não proíbe), só pode fazer o que a lei permite. Ou seja, se a lei não fala que eles pode proibir isso ou aquilo, eles não podem e pronto. Não adianta bater o pé, fazer cara feia, falar que vai punir, que vai prender e arrebentar.De acordo com o conceituado autor Celso Antônio Bandeira de Mello, “a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir um regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar ”.Esse princípio é a nossa garantia de que a autoridade não vai abusar de seu poder, não vai sair como um rei absolutista, fazendo o que lhe dá na telha, punindo ou absolvendo como bem entende, perseguindo, acossando, favorecendo, apadrinhando... Segundo esse princípio, é obrigatório que a autoridade, sempre aja com base na lei. Um país que não respeita esse princípio não é um Estado Democrático de Direito, uma vez que não resguarda as liberdades civis daqueles que se encontram em seu território. Enfim, isso tudo quer dizer que, se existe uma lei que diz o que o Conselho pode fazer, nós já sabemos o que ele não pode fazer, que é: tudo que não estiver nela. E a lei que fala o que o Conselho pode fazer é a 3.268/57, que instituiu o Conselho Federal e os Conselhos Regionais. E adivinha o que *não* aparece nas atribuições dos Conselhos? Decidir ONDE os médicos podem praticar medicina, ou na PRESENÇA DE QUEM poderiam fazê-lo. Vejamos:

“Art. 15. São atribuições dos Conselhos Regionais:
a) deliberar sobre a inscrição e cancelamento no quadro do Conselho; 
b) manter um registro dos médicos, legalmente habilitados, com exercício na respectiva Região;
c) fiscalizar o exercício da profissão de médico; 
d) conhecer, apreciar e decidir os assuntos atinentes à ética profissional, impondo as penalidades que couberem; 
e) elaborar a proposta do seu regimento interno, submetendo-a a aprovação do Conselho Federal; 
f) expedir carteira profissional; 
g) velar pela conservação da honra e da independência do Conselho, livre exercício legal dos direitos dos médicos; 
h) promover, por todos os meios e o seu alcance, o perfeito desempenho técnico e moral da medicina e o prestígio e bom conceito da medicina, da profissão e dos que a exerçam;
i) publicar relatórios anuais de seus trabalhos e a relação dos profissionais registrados;
j) exercer os atos de jurisdição que por lei lhes sejam cometidos; 
k) representar ao Conselho Federal de Medicina Aérea sobre providências necessárias para a regularidade dos serviços e da fiscalização do exercício da profissão.”

Ainda que alguém dissesse que o Conselho tem o direito de se intrometer dessa forma tão truculenta na vida alheia por conta do item c (que diz, simplesmente, “fiscalizar o exercício da profissão de médico”), a verdade é que também esse item está restrito ao que diz a lei – o Decreto Federal 20.931/32, que estabelece *com legitimidade* as vedações não somente aos médicos, mas também às parteiras e enfermeiras obstetrizes. E adivinha o que não consta nessas vedações? Pois é, o acompanhamento de partos domiciliares. Ou a presença de doulas, parteiras e obstetrizes nos hospitais, junto com as parturientes. E o Conselho não pode se utilizar desse poder de fiscalização para criar proibições novas, que a lei já não criou – tem que se restringir a fiscalizar as que o decreto estipulou.Aliás, as Resoluções do CREMERJ citam esse Decreto, em um de seus “considerandos”, ao dizer que “o artigo 24 do Decreto 20.931/32, que determina que os institutos hospitalares só poderão funcionar sob a responsabilidade e direção técnica de médicos”. Sim, esse é o texto do art. 24... mas o que tem isso a ver com proibir a atuação de médicos fora dos institutos hospitalares? Ou com proibir a participação das doulas, parteiras obstetrizes dentro deles?Além disso, é estapafúrdia a utilização do item d (a respeito da ética profissional) como justificativa para esse abuso quando, na verdade, nada há de mais antiético do que atacar as práticas que as evidências científicas já demonstraram serem as melhores (com o reconhecimento não apenas pelo Ministério da Saúde, mas também da Organização Mundial de Saúde).Por fim, não há nenhuma lei ou dispositivo legal que justifique essa atuação do CREMERJ com base no item j.Agora, por outro lado... vale a pena falar das OBRIGAÇÕES dos Conselhos de zelar tanto pela liberdade dos médicos no exercício de sua profissão quanto pelo perfeito desempenho da medicina (o que se torna impossível quando práticas ultrapassadas são favorecidas em detrimento do que a ciência demonstrou dar melhores resultados), conforme os trechos realçados nos itens g e h, acima.Mas tem mais. Voltando à Constituição, temos que, novamente no artigo 5º, também temos o inciso XIII, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.Ou seja, o CREMERJ não tem poder para impedir o livre exercício da profissão das doulas, obstetrizes e parteiras, mesmo porque seus poderes começam e acabam somente na esfera dos médicos. Aliás, ainda que a profissão de doula ainda não faça parte do Conselho Brasileiro de Ocupações, enfermeiros e as parteiras têm profissões reconhecidas, com seu próprio Conselho e regulamentações. E mesmo em relação aos médicos, a liberdade de exercício profissional não poderia ser ferida sem o devido respaldo legal.Outro poder que o CREMERJ não tem (mas está querendo tomar à força) é o de escolher quem pode ou não acompanhar a parturiente. Afinal, como diz a lei 11.108/05 (lei do acompanhante):

“Art. 19-J: Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. § 1o O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente.” 

Portanto, se a gestante quiser indicar como acompanhante uma doula ou parteira, o CREMERJ (ou quem quer que acate as Resoluções) age na ilegalidade ao impedi-la isso.Mais ainda: como pretenderia o CREMERJ fiscalizar o cumprimento dessa norma esdrúxula? E se a mulher que está parindo for, digamos, filha de uma doula? Estaria a mãe dela proibida de acompanhar a filha por ser doula? Ou será que ela poderia acompanhá-la desde que não a doulasse? Mas como seria possível para uma doula não doular a própria filha, ainda que sem querer? Vai ficar alguém vigiando? “ops, massagem não, massagem é coisa de doula!” Chega a ser ridículo o cenário que se forma a partir disso...Além de todas nós enchermos as ouvidorias com reclamações, podem impetrar mandado de segurança: 1. qualquer médico do RJ que queira trabalhar com doula, ou assistir um parto domiciliar, ou ser back-up de um parto domiciliar; 2. qualquer parteira ou obstetriz do RJ que queira participar de um parto no hospital; ou 3. qualquer gestante do RJ que queira ser acompanhada por uma parteira ou doula ou obstetriz no hospital, ou queira um parto domiciliar assistido por um médico (afinal, se é seu direito fazer tudo o que a lei não proíbe e, se a lei não proíbe você de ter um médico te assistindo, não cabe ao Conselho lesar esse seu direito).Entidades de classe (de parteiras ou obstetrizes, por exemplo, desde que existentes há mais de um ano) podem também impetrar mandado de segurança coletivo e pode ser procurado o MPF (Ministério Público Federal) no Rio de Janeiro para denunciar o abuso de autoridade e pedir providências. Tanto o MPF quanto a Defensoria Pública podem propor Ação Civil Pública contra o CREMERJ.No final, o CREMERJ nos presenteou com a oportunidade de finalmente colocar tudo às claras. Vamos à luta!

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