As Resoluções 265 e
266/2012 do CREMERJ atentam contra a Constituição (Art. 5º, incisos II e XIII)
e contra a Lei Federal n.º3.268/57, sendo não apenas inconstitucionais, mas
também ilegais, constituindo ainda abuso de autoridade (Lei 4898/65, Art. 3º “Constitui
abuso de autoridade qualquer atentado: [...] j) aos direitos e garantias legais
assegurados ao exercício profissional.), por atentarem contra a liberdade
profissional não só dos médicos do RJ, como das parteiras, enfermeiros e
doulas.
Segundo a Constituição
Federal:
“Art. 5º Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (...)
II – ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”
O inciso II
estabelece o que chamamos de princípio da legalidade. Esse é o princípio que
nos defende contra a arbitrariedade da Administração (ou seja, do governo ou de
quem lhe faça as vezes, órgãos públicos, autarquias, qualquer instituição que
regule a sociedade e seus indivíduos).O CREMERJ citou,
sim, vários dispositivos legais como suposto embasamento para as Resoluções.
Mas nenhum deles faz qualquer vedação à presença de doulas ou obstetrizes nas
salas de parto; aliás, muito pelo contrário, já que a maior parte dos
dispositivos legais citados estabelece justamente a exigência do tratamento
digno à gestante e à criança, coisa que a presença de doulas e obstetrizes,
como sabemos, só ajuda a proporcionar. Ou seja, o Conselho tirou a sua
proibição do virtual nada, sem nenhum direito ou poder para fazê-lo.Existe um princípio
do Direito, apoiado nesse princípio da legalidade, que diz que “não cabe ao
intérprete restringir o que a lei não restringiu”, ou seja, não pode o CREMERJ
criar obstáculos inexistentes na lei, ainda que sob a desculpa de ser essa a
sua “interpretação” dessa lei. Ou seja, não dá para o Conselho dizer que “como
o ECA fala de nascimento sadio e harmonioso e, na minha opinião (tosca e sem
fundamento), isso só tem como ocorrer no hospital, eu estou usando isso como
base para a minha proibição ao parto domiciliar”. Outro princípio
interessante do Direito Administrativo que cabe citar neste caso é o da
legalidade estrita, ou seja, o Administrador (neste caso, o CREMERJ), ao
contrário da gente (que pode fazer tudo o que a lei não proíbe), só pode fazer
o que a lei permite. Ou seja, se a lei não fala que eles pode proibir isso ou
aquilo, eles não podem e pronto. Não adianta bater o pé, fazer cara feia, falar
que vai punir, que vai prender e arrebentar.De acordo com o
conceituado autor Celso Antônio Bandeira de Mello, “a Administração não poderá
proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente
embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer
que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir um regulamento, instrução,
resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos
administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição
que o ato administrativo venha a minudenciar ”.Esse princípio é a
nossa garantia de que a autoridade não vai abusar de seu poder, não vai sair
como um rei absolutista, fazendo o que lhe dá na telha, punindo ou absolvendo
como bem entende, perseguindo, acossando, favorecendo, apadrinhando... Segundo
esse princípio, é obrigatório que a autoridade, sempre aja com base na lei. Um
país que não respeita esse princípio não é um Estado Democrático de Direito,
uma vez que não resguarda as liberdades civis daqueles que se encontram em seu
território. Enfim, isso tudo
quer dizer que, se existe uma lei que diz o que o Conselho pode fazer, nós já
sabemos o que ele não pode fazer, que é: tudo que não estiver nela. E a lei que
fala o que o Conselho pode fazer é a 3.268/57, que instituiu o Conselho Federal
e os Conselhos Regionais. E adivinha o que *não* aparece nas atribuições dos
Conselhos? Decidir ONDE os médicos podem praticar medicina, ou na PRESENÇA DE
QUEM poderiam fazê-lo. Vejamos:
“Art. 15. São
atribuições dos Conselhos Regionais:
a) deliberar sobre a
inscrição e cancelamento no quadro do Conselho;
b) manter um
registro dos médicos, legalmente habilitados, com exercício na respectiva
Região;
c) fiscalizar o
exercício da profissão de médico;
d) conhecer,
apreciar e decidir os assuntos atinentes à ética profissional, impondo as
penalidades que couberem;
e) elaborar a
proposta do seu regimento interno, submetendo-a a aprovação do Conselho
Federal;
f) expedir carteira
profissional;
g) velar pela
conservação da honra e da independência do Conselho, livre exercício legal dos
direitos dos médicos;
h) promover, por
todos os meios e o seu alcance, o perfeito desempenho técnico e moral da
medicina e o prestígio e bom conceito da medicina, da profissão e dos que a
exerçam;
i) publicar
relatórios anuais de seus trabalhos e a relação dos profissionais registrados;
j) exercer os atos
de jurisdição que por lei lhes sejam cometidos;
k) representar ao
Conselho Federal de Medicina Aérea sobre providências necessárias para a
regularidade dos serviços e da fiscalização do exercício da profissão.”
Ainda que alguém
dissesse que o Conselho tem o direito de se intrometer dessa forma tão
truculenta na vida alheia por conta do item c (que diz, simplesmente,
“fiscalizar o exercício da profissão de médico”), a verdade é que também esse
item está restrito ao que diz a lei – o Decreto Federal 20.931/32, que
estabelece *com legitimidade* as vedações não somente aos médicos, mas também
às parteiras e enfermeiras obstetrizes. E adivinha o que não consta nessas
vedações? Pois é, o acompanhamento de partos domiciliares. Ou a presença de doulas,
parteiras e obstetrizes nos hospitais, junto com as parturientes. E o Conselho
não pode se utilizar desse poder de fiscalização para criar proibições novas,
que a lei já não criou – tem que se restringir a fiscalizar as que o decreto
estipulou.Aliás, as Resoluções
do CREMERJ citam esse Decreto, em um de seus “considerandos”, ao dizer que “o
artigo 24 do Decreto 20.931/32, que determina que os institutos hospitalares só
poderão funcionar sob a responsabilidade e direção técnica de médicos”. Sim, esse
é o texto do art. 24... mas o que tem isso a ver com proibir a atuação de
médicos fora dos institutos hospitalares? Ou com proibir a participação das
doulas, parteiras obstetrizes dentro deles?Além disso, é
estapafúrdia a utilização do item d (a respeito da ética profissional) como
justificativa para esse abuso quando, na verdade, nada há de mais antiético do
que atacar as práticas que as evidências científicas já demonstraram serem as
melhores (com o reconhecimento não apenas pelo Ministério da Saúde, mas também
da Organização Mundial de Saúde).Por fim, não há
nenhuma lei ou dispositivo legal que justifique essa atuação do CREMERJ com
base no item j.Agora, por outro
lado... vale a pena falar das OBRIGAÇÕES dos Conselhos de zelar tanto pela
liberdade dos médicos no exercício de sua profissão quanto pelo perfeito
desempenho da medicina (o que se torna impossível quando práticas ultrapassadas
são favorecidas em detrimento do que a ciência demonstrou dar melhores
resultados), conforme os trechos realçados nos itens g e h, acima.Mas tem mais.
Voltando à Constituição, temos que, novamente no artigo 5º, também temos o
inciso XIII, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício
ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.Ou seja, o CREMERJ
não tem poder para impedir o livre exercício da profissão das doulas,
obstetrizes e parteiras, mesmo porque seus poderes começam e acabam somente na
esfera dos médicos. Aliás, ainda que a profissão de doula ainda não faça parte
do Conselho Brasileiro de Ocupações, enfermeiros e as parteiras têm profissões
reconhecidas, com seu próprio Conselho e regulamentações. E mesmo em relação
aos médicos, a liberdade de exercício profissional não poderia ser ferida sem o
devido respaldo legal.Outro poder que o
CREMERJ não tem (mas está querendo tomar à força) é o de escolher quem pode ou
não acompanhar a parturiente. Afinal, como diz a lei 11.108/05 (lei do
acompanhante):
“Art. 19-J: Os
serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou
conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1
(um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e
pós-parto imediato. § 1o O acompanhante de que trata o caput deste artigo será
indicado pela parturiente.”
Portanto, se a
gestante quiser indicar como acompanhante uma doula ou parteira, o CREMERJ (ou
quem quer que acate as Resoluções) age na ilegalidade ao impedi-la isso.Mais ainda: como
pretenderia o CREMERJ fiscalizar o cumprimento dessa norma esdrúxula? E se a
mulher que está parindo for, digamos, filha de uma doula? Estaria a mãe dela
proibida de acompanhar a filha por ser doula? Ou será que ela poderia
acompanhá-la desde que não a doulasse? Mas como seria possível para uma doula
não doular a própria filha, ainda que sem querer? Vai ficar alguém vigiando?
“ops, massagem não, massagem é coisa de doula!” Chega a ser ridículo o cenário
que se forma a partir disso...Além de todas nós
enchermos as ouvidorias com reclamações, podem impetrar mandado de segurança:
1. qualquer médico do RJ que queira trabalhar com doula, ou assistir um parto
domiciliar, ou ser back-up de um parto domiciliar; 2. qualquer parteira ou
obstetriz do RJ que queira participar de um parto no hospital; ou 3. qualquer
gestante do RJ que queira ser acompanhada por uma parteira ou doula ou
obstetriz no hospital, ou queira um parto domiciliar assistido por um médico
(afinal, se é seu direito fazer tudo o que a lei não proíbe e, se a lei não
proíbe você de ter um médico te assistindo, não cabe ao Conselho lesar esse seu
direito).Entidades de classe
(de parteiras ou obstetrizes, por exemplo, desde que existentes há mais de um
ano) podem também impetrar mandado de segurança coletivo e pode ser procurado o
MPF (Ministério Público Federal) no Rio de Janeiro para denunciar o abuso de
autoridade e pedir providências. Tanto o MPF quanto a Defensoria Pública podem
propor Ação Civil Pública contra o CREMERJ.No final, o CREMERJ
nos presenteou com a oportunidade de finalmente colocar tudo às claras. Vamos à
luta!
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