quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Filho de Daniel

retirado do Livro de contos "Velas.Por quem?" da escritora paraense Maria Lúcia Medeiros.



"Não bastasse a tempestade que se abateu sobre a cidade naquela noite, o filho de Daniel nasceu pequeno e feio, cheio de dificuldades. Dificuldades pra nascer, pra chorar, pra respirar, dificuldades pra se alimentar.
O melhor vinho do Porto selecionado para brindar à chegada do filho de Daniel quase foi esquecido, tamanha a correria no hospital pra salvar tão frágil criaturinha a necessitar de aparelhos complicados e urgências.
Debruçado sobre o rico berço, Daniel, alto e forte e poderoso, jamais tinha demorado os olhos sobre tão destituído ser.
Aos dois anos de idade o filho de Daniel já abalara sensivelmente a fortuna do pai, tantas eram as viagens internacionais, intercontinentais, as casas de saúde, intermináveis discussões com especialistas em vidas tão frágeis.
Daniel – que a cidade inteira aprendera a admirar como o ganhador imbatível de todas as medalhas, o saltador invicto dos mais difíceis obstáculos, ganhava um filho incapaz de aprender a andar de bicicleta.
O filho de Daniel exigia vigilias cansativas e noites insones. A asma arrebentava-lhe o magro peito, os olhos saltavam e Daniel, desesperado, embalava-o em vão nos braços musculosos, aquecia-lhe em peito tão hirsuto.
Daniel que fizera misérias no time de futebol do colégio, quebrando os adversários com chutes violentos e jogadas mirabolantes, tinha que se contentar em ver o filho interessar-se por futebol de botão, entre tossidas e espirros.
Sensível a quedas, a roxuras, a alergias raras, fácil de ser contaminado, o filho de Daniel era conhecido por sua fraqueza.
A caixa de medalhas conquistadas por Daniel durante toda a sua saudável juventude fora esquecida.
Não havia sentido nenhum em concorrer com a púnica medalha exibida por seu filho: a medalha de ouro maciço, um Anjo da Guarda de compridas asas para melhor voltear, para ser mais rápido e salvar seu protegido nos tantos perigos.
Ver o filho sorrindo parecendo sem sofrimento, Daniel viu uma só vez. Foi quando chamou para sua casa um mágico andarilho, cavanhaque pontiagudo que tirava coelhos da cartola, e sorria com dentes de ouro. Protegido pelos braços do pai, o filho de Daniel acendera olhar tão deslumbrado e batera palmas de tanto contentamento que Daniel andou pensando em aprender mágicas para salvar seu filho.
Pensou e executou. Comprou caixas e livros, comprou cartolas e lenços coloridos enquanto deixava crescer o cavanhaque.
Cada emoção provocada, médicos e enfermeiras entravam apressadamente pela porta da frente.
Benzedeiras, bruxas e videntes serviam-se das portas dos fundos que Daniel não tinha assim tantas opções para ajudar seu filho.
Durou tão pouco o sonho. Um médico circunspecto surpreendeu o coração do filho de Daniel batendo descompassado e, sem magia, receitou doses pequenas de emoção tirando-lhe por fim a fantasia.
Aos oito anos o filho de Daniel descobriu as histórias nos livros.
No princípio sonhou com ladrões e salteadores de estradas. De uma feita quase mata Daniel de susto ao acordar no meio de um pesadelo gritando palavras cabalísticas para ajudar João e Maria a escaparem da bruxa.
Um dia descobriu a história do Pequeno Polegar, herói pequeno e iniciou sem perceber, novo ciclo de viagens em abas de chapéus...
Sarou não sarou de vez e é bom esclarecer. Mas pra quem acompanhou o resto da história do filho de Daniel, muita coisa milagrosamente começou a acontecer.
Ao passarem os dois, pai e filho, a caminho do trabalho já podia ouvir dizer: Lá vai Daniel e seu pai.
E quem ousaria imaginar que a história desse pai e desse filho tivesse sido tramada nos confins da Idade Média, quem?"

 
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Deixo para reflexão...bjss!

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